“A Morte de Estaline” em ante-estreia

No dia 19 de Abril, às 21h30, decorre a sessão oficial de abertura do Festival Política, no São Jorge, com a ante-estreia de “A Morte de Estaline”, filme de Armando Iannuci. A ante-estreia nacional resulta de uma parceria com a Cinemundo. Rui de Abreu faz de seguida um resumo da vida de Estaline.

Portador de deficiências físicas (um pé deformado e um braço atrofiado por um atropelamento aos 12 anos), Estaline foi dispensado do serviço militar na Primeira Guerra Mundial. Na sua ascensão gradual na estrutura do partido bolchevique, antes e depois da Revolução de 1917, as suas funções nunca foram militares. Encarregue de gerir as nacionalidades do ex-Império Russo, agora convertido em União de Repúblicas Socialistas, fez questão de impedir independências ou autonomias nas províncias periféricas (nomeadamente a sua terra natal). Foi também encarregue da logística e mantimentos do Exército Vermelho durante a guerra civil, entre 1918 e 1922.

Na iminente morte de Lenine, precoce face à ainda instável situação interna e externa da já aqui União Soviética, o seu nome é referido, mas olhado com condescendência por outros membros da elite do partido. Estaline não é um herói de guerra nem um teórico brilhante, e as comparações com o seu futuro arqui-inimigo Trotsky começam a notar-se nos últimos meses de vida de Lenine. Mas Estaline é prático e pragmático. As suas funções desempenhadas na retaguarda são reconhecidas, tal como sua organização metódica. Os anos de funções por todo o país garantem-lhe apoiodas bases partidárias. Os congressos seguintes do PCUS são revitalizados com militantes de base angariados durante a guerra civil.

O país quer paz e ordem, e os lirismos revolucionários de Trotsky não garantem nem uma nem outra. Estaline fica e os rivais vão saindo do caminho com tempo e precisão. Parte substancial das purgas políticas de Estaline nos anos 30 foram, precisamente, no Exército Vermelho. Estaline liquida quadros, oficiais e estrategas e tudo o que faça lembrar Trotsky e bravuras militares. As poucas experiências militares anteriores a 1941 mostraram umas forças armadas depauperadas e mal equipadas quando comparadas a potências vizinhas, facto que ficou patente no apoio aos republicanos na Guerra Civil Espanhola.

O início da Operação Barbarossa (a invasão alemã de 1941) que constitui a traição de Hitler face ao pacto de não-agressão germano-soviético de 1939 altera todo uma situação vigente. Estaline, o recruta inapto e gestor da retaguarda passa a marechal heróico que sustém, rebate e derrota a ameaça nazi. Estaline em 1938 é um estadista alienado, em 1945 um vencedor aliado. Estaline defende a mãe-Rússia, recupera o orgulho pátrio e reautoriza a abertura de igrejas e cultos como suporte moral nacional. Em 1945 Hitler jaz morto e a bandeira vermelha no topo do Reichstag é uma imagem que imortaliza o fim da guerra e o seu principal vencedor. Nas cimeiras de Teerão, Ialta e Potsdam, Estaline diz o que quer e retalha a Europa com a autoridade de quem assumiu a maior despesa em vidas humanas. O mundo do pós-guerra é o de duas potências mundiais, e Estaline governa isolado a maior.

Achincalhado pelos opositores revolucionários pela sua inexperiência militar é a vitória na II Guerra Mundial que lhe é reconhecida como a maior glória. Se as purgas e massacres são uma imagem do terror, as paradas anuais do dia da vitória, na Praça Vermelha de Moscovo mantêm viva a memória e legado do vencedor.

Curiosamente a sua aparência e indumentária parecem ter sido um presságio. Não tendo sido militar nem na Guerra de 14-18 nem na Guerra Civil desde a Revolução de Outubro passou a vestir sempre uma farda simples e botas militares, com um bem aparado bigode. Acompanha assim na imagem a transição do desleixo juvenil para o soldado-de base na guerra entre classes.

A guerra maior viria depois. Transição, transformação ou revolução. Poucos períodos de mudança da História mundial foram tão rápidos e duradouros como a transformação da Rússia em URSS. Churchill nota nas suas memórias quer o espanto na rapidez das linhas de montagem de carros blindados como na invenção de uma “torneira que mistura água quente e fria na mesma bica”. Estaline recebe (ou toma) uma herança pesada de Lenine: um país destroçado por 10 anos de guerra, externa e interna. Uma economia primitiva, um país rural, uma sociedade feudal. Trezentos anos depois dos impulsos modernizadores de Pedro, o Grande (um dos dois czares que Estaline admira, juntamente com Ivan, o Terrível) a economia e a sociedade russas permanecem quase inalteradas. De país rural a potência industrial, de fomes cíclicas a exportador de cereais, de exército improvisado a potência nuclear. De carroças com batatas ao Sputnik, primeiro satélite no espaço.

Estaline herda camponeses famintos e lega cientistas e cosmonautas. O seu pragmatismo e dogmas de infalibilidade pessoal (o culto de personalidade é retrato da reverência messiânica de se faz alvo) vão alterar radicalmente as práticas ainda experimentais de Lenine. A Revolução de Outubro é alimentada pela carestia da guerra, mas os bolcheviques pouco conseguem durante os seus primeiros anos no poder.

As tentativas de colectivização saem goradas. A guerra civil consome tempo e recursos. O comunismo enquanto meta permanece distante. A política de Lenine para evitar o descalabro (NEP ou Nova Política Económica) foi a reintrodução parcial da iniciativa privada para os pequenos negócios. A economia recupera, a agricultura também, e Lenine define a jogada como “um passo atrás para dar dois em frente”.

Estaline entende que o país não pode esperar, e a guerra civil (entre partidos) fora um passo apenas na guerra maior (entre classes). Abandonando a ideia de comunismo internacional ou revolução mundial, caros a Trotsky e demais fundadores, aposta na ideia do comunismo num estado forte, que possa inspirar outros pela sua eficiência. São gerados planos quinquenais com objectivos e metas de produtividade.

A colectivização dos solos é um passo necessário à mecanização da agricultura, logo é implementada. A produtividade industrial tem de ser aumentada, logo eliminam-se entraves e atrasos. As delações sobre trabalhadores lentos ou improdutivos (logo sabotadores do bem comum) são uma das várias fórmulas para instalar o terror. Mas funciona. Terror, trabalhos forçados, fome, morte, exílio, são para Estaline apenas etapas num percurso definido.

Os números de vítimas mortais do regime de Estaline são ainda hoje debatidos. Entre mortos pela fome, perseguidos políticos, execuções sumárias, vítimas na guerra, há valores que vão dos 15 aos 60 milhões de mortos por influência directa ou indirecta de Estaline. Os números do progresso atingido são menos sujeitos a variáveis interpretativas. Oito horas de trabalho diário, direitos à habitação e educação, paridade salarial entre homens e mulheres, tudo parecem direitos adquiridos,
mas foram introduções inéditas num país em que a escravatura feudal fora abolida cerca de uma geração antes de 1917.

O medo e temor que inspirou tiveram um epílogo de tragicomédia na hora da sua morte. Sabendo os guardas que Estaline não gostava de ser interrompido nas suas sestas passaram mais de 24 horas até alguém entrar no escritório para importunar o repouso do marechal. Estava estendido em urina e vítima de um derrame cerebral há horas. Ainda assim há um circo entre médicos por medo em passar certidão de óbito e vê-lo acordar.

A memória do medo ultrapassou-o na morte.

Rui de Abreu