“Os nossos bairros são campos de treino de polícias”

O debate que abriu o primeiro o dia da segunda edição do Festival Política questionou se “a justiça é racista” A reportagem é da autoria de Valentina Marcelino e foi publicada no Diário de Notícias a 20 de Abril de 2018


José Semedo Fernandes, um advogado nascido em Portugal e filho de emigrantes cabo-verdianos, cresceu a ouvir os mais velhos exigir respeito pelas autoridades. “Para os meus pais, desrespeitar um polícia era gravíssimo”, contou, “e houve tempos em que quando a polícia tinha de entrar no bairro (Santa Filomena, Amadora) tinha o cuidado de não agredir os jovens que estavam ao pé dos mais velhos, por respeito”.
De há uns anos para cá “os nossos bairros são campos de treino dos polícias. Têm aulas teóricas na escola, práticas nos nossos bairros na Amadora. É esta a realidade. Crescemos a com a violência policial. A minha mãe, uma senhora muito educada, quando os vê da janela a entrar no bairro até diz: “Lá vêm eles estagiar outra vez! Se és preto, és suspeito, foi o que me disse uma vez um polícia. Estudei numa escola em que os azuis-claros sentavam-se à frente e os azuis-escuros atrás.”
José Fernandes falava pausadamente, com as duas mãos a segurar o microfone, no debate que abriu ontem o Festival Política, que decorre no cinema São Jorge, cujo tema era uma pergunta: “A justiça é racista?” A resposta foi unânime entre todos os convidados: sim, o sistema judicial é racista, a sociedade é racista de forma declarada, violenta, nada mas nada “subtil”, como uma investigadora brasileira sugeriu da audiência. A falar por experiência própria estava Lúcia Gomes, a advogada que tem a defesa dos seis jovens da Cova da Moura vítimas dos agentes da PSP da esquadra de Alfragide, acusados de tortura e racismo. “Nos meus anos de profissão nunca me tinha deparado com um caso de racismo. Quando ouvi pela primeira vez os relatos daqueles jovens, quando vi as fotos, não acreditei que fosse possível. Depois percebi como o racismo está impregnado nas nossas instituições, ninguém nos apoiava quando contávamos o que tinha acontecido, e fomos confrontados com a versão da polícia de que tinham tentado invadir a esquadra. Só porque eram jovens, negros e da Cova da Moura”, recorda.
Outro testemunho perentório em relação ao racismo em Portugal e na justiça foi o de Joacine Katar Moreira, investigadora de ciências sociais: “É óbvio que existe racismo em Portugal, na sociedade e nas instituições. As entidades ainda estão enredadas numa ótica igual à do tempo colonial, de um regime fascista. A justiça é racista e elitista. Quando os africanos ou os afrodescendentes contam a sua versão, à partida desconfia-se. Se forem humilhados e torturados é porque fizeram algo de errado.”
Do público, alguém perguntou “como se resiste” a esta situação “se todas as instituições estão dominadas por caucasianos?”. Respondeu Beatriz Gomes Dias, presidente da Djass – Associação de Afrodescendentes: “Resistimos fazendo o que estamos a fazer aqui, debatendo, denunciando, criando outras memórias, como o que fizemos no projeto que temos para construir um memorial para recordar os escravizados no tempo dos Descobrimentos, exigindo do Estado e das instituições que façam o seu papel.”
Para Joacine é “urgente” que o Estado “assuma que há racismo. Assumir isso é encarcerar e enquadrar criminalmente todos os comportamentos racistas”.