“Semba versus Petróleo”, Waldemar Bastos e Carlos Burity

André Castro Soares relata a experiência da oficina/concerto no Festival Política – Lisboa, que decorreu a 14 de Agosto. Texto publicado no site Semba Património Imaterial.

A apresentação de uma proposta de comunicação intitulada: “Semba versus Petróleo”: usos e valor dos patrimónios identitários como alternativa à economia do petróleo em Angola, no sétimo congresso da Associação Portuguesa de Antropologia, em Lisboa, no mês de junho, foi uma tentativa de reflectir sobre duas heranças patrimoniais de Angola. A primeira era o meu foco de estudo, o semba, um género de dança e música associado à construção da nação moderna angolana; a segunda, o petróleo, recurso pilar da economia angolana e responsável pelo desenvolvimento económico vertiginoso do país, sobretudo a partir do início do novo milénio.

Em conversa com os diretores do Festival Política, decidi apresentar a proposta de pensar o Património Cultural Imaterial como possível alternativa à economia poluidora do petróleo e a forma como as candidaturas à lista representativa da UNESCO tem permitido dar destaque à cultura como solução económica rentável sobretudo a partir dos fluxos turísticos associados a bens culturais expressivos como a dança e a música. Veja-se o caso de Cuba e da República Dominicana que com o son e o merengue construíram polos de aprendizagem e trocas culturais com muito êxito à escala global. Mas o caso paradigmático seria até o tango, expressão cultural mundialmente reconhecida e que nos transporta aos ambientes das cidades de Buenos Aires, na Argentina e Montevideu, no Uruguai.

O Festival Política acolheu a minha proposta, mas era preciso dar-lhe um cunho mais performativo e não tanto académico. A ideia era também apresentar a proposta em abril de 2020, precisamente no dia 25 de abril. Mas o surto pandémico viria alterar todos os planos.

Em janeiro de 2020 conheci o músico e compositor Galiano Neto e por sugestão da cineasta angolana Ariel de Bigault, realizadora do filme “Canta Angola”. Com Galiano entendi os contornos políticos do semba e a forma como a sua biografia tinha sido alterada pela política obrigando-o a sair de Angola, após ter estado em várias bandas, como a Banda Maravilha e ser responsável por muitos temas de semba e não só. Considerei que poderia ser interessante ligar o semba e o petróleo através da fala de músicos que tinham sido vítimas da própria economia do petróleo e seus policiamentos a partir da máquina do governo angolano. Aqui e convém referir que era importante escutar pessoas chave ligadas à diáspora angolana e que em Lisboa promovem e difundem as suas expressões culturais musicais como o semba. Após visitar o meu terreno de pesquisa, Luanda, era importante escutar as vozes daquela comunidade de músicos que estão fora, abrindo o terreno etnográfico, que estava desbravar. A entrevista com Galiano Neto foi muito produtiva.

Há já alguns anos que conhecia Chalo Correia. No lançamento do livro da Joana Gorjão Henriques “Racismo em Português”, Chalo tinha animado o jantar com músicas angolanas e não só. Também o tinha visto tocar com a roda de samba “Viva o Samba” no Titanic Sur Mer fazendo as ligações musicais possíveis entre o samba e o semba. Só mais tarde me apercebi que Chalo Correia e Galiano Neto tocavam juntos. Marcamos um ensaio para definir o alinhamento para o Festival Política. Na Quinta das Conchas preparamos aquilo a que chamamos de oficina/performance numa ligação entre estórias do semba e as questões críticas relacionadas com os processos de patrimonialização com o objetivo da chancela da UNESCO.

Infelizmente a nossa oficina viria a ser assombrada com o falecimento de dois grandes músicos angolanos: Waldemar Bastos e Carlos Burity. Era essencial uma homenagem a dois músicos que ilustram bem a forma como a música é uma janela importante para a observação do social e do político em Angola. Waldemar Bastos, um músico proscrito pelo regime político acabou por cantar angola sem nunca ser reconhecido. Apesar disso foi, a seguir ao Bonga, dos mais internacionais músicos angolanos com discos como “Angola minha namorada” e “Classics od my Soul”. Uma das músicas conhecidas é a “Velha Chica” a quem se perguntava:

“Qual era a razão daquela pobreza,
Daquele nosso sofrimento
Qual era a razão daquela pobreza,
Daquele nosso sofrimento”
E a Velha Chica respondia: 
“Xê menino, xê menino não fala política,
Não fala política, não fala política
Xê menino não fala política,
Não fala política, não fala política”. 

Uma letra canção que nos consegue trazer a forma como a música pode ser a denúncia de um estado das coisas. “Xé menino não fala política” revela também como pode a política e a cidadania “queimar” um artista ou uma sensibilidade. Só recentemente Waldemar Bastos pôde cantar esta música em Angola. Num concerto em Benguela. Conseguiu despedir-se. Mas não me deu tempo de marcarmos uma conversa. Em finais de 2019 tinha-lhe pedido o telefone para falarmos para a minha pesquisa, infelizmente, não fui a tempo.

Carlos Burity também partiu. Antes cantou com Paulo Flores o “Poema do Semba”, talvez a música que melhor sintetiza a importância social e performativa deste género musical e de dança em Luanda. Foi na sua voz que o semba ganhou toda uma profundidade reflexiva. No filme de Ariel de Bigault, Carlos Burity refere que “se cantares em semba cantas com mais sentimento mais gosto” (Bigault 2000, pt. 12:53). Esse gosto que fica agora para a eternidade da obra do cantor que partiu sem ser verdadeiramente homenageado pelo seu país. Mais uma vez a música como um lugar onde cabe o sublime e a desmemória. Também não consegui chegar à conversa com Carlos para a minha pesquisa, apesar das insistências de Ariel de Bigault.

A oficina/performance “Semba versus Petróleo” constitui-se como um momento de homenagem e aprendizagem. Um ato de escuta e de fala. Tomei a ousadia de acompanhar Chalo Correia e Galiano Neto com a dicanza, instrumento de fricção usado na produção do semba entre outros géneros. Aprendi com Jorge Mulumba, um dos interlocutores-chave da minha pesquisa sobre semba enquanto património imaterial. Foi importante estar ali com aqueles que fazem semba, estar em palco. Se fosse em Angola talvez não ousasse fazer esta tentativa, mas a preparação da performance e a criação de confiança gerou esta partilha.

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